Um dos temas que mais têm me chamado a atenção neste início de leitura do “Idiota” é a reiteração constante que o narrador faz em relação ao aspecto espontâneo da personalidade do príncipe Míchkin. O personagem sempre é descrito como alguém gentil, bem-educado e completamente destituído de más intenções.

Isso me lembra de um debate que tive com uma colega de pós-graduação, quando do curso desta, há cerca de dois anos. O tema era a pintura de Picasso e ela, que era arte-terapeuta de crianças, bradava decidida que “seu filho faria melhor” que o mestre cubista, dada a simplicidade – segundo ela claro -, da obra do pintor espanhol.

Jackson Pollock - "nº 1" (1949)

Jackson Pollock - "nº 1" (1949)

Outra associação que me surgiu foi com a obra do pintor norte-americano Jackson Pollock. A action painting (“pintura de ação”) de Pollock também é geralmente associada a signos como o da facilidade, como se não houvesse a menor intencionalidade crítica por detrás do conceito que o pintor criava. Como se a coisa fosse movida apenas e tão somente pela tal espontaneidade…

Nos casos de Picasso e Pollock, de fato não era a espontaneidade que norteava suas práticas artísticas. Havia, nos cubos do espanhol e nas performances pictóricas do norte-americano, intenção de pensar o mundo e de produzir olhares para além do aparente rotineiro.

Com o príncipe de Dostoiévski a coisa parece ser um pouco diferente. Pelo menos até o momento, o que me surge é um fidalgo que não faz jus ao que se vê na maioria dos casos. Faz lembrar, inclusive o Rei Lear de Shakespeare, às voltas com as contradições das filhas. Míchkin possui apreço pelo “prazer de travar conhecimento”.

É curioso como isso traz para o primeiro plano um aspecto comum no ser humano em geral. Travar conhecimento, no sentido de debater questões no dia-a-dia, parece, para muita gente, algo especialmente complicado e angustiante. Via de regra, o escape disso é a busca por guetos intelectuais que sustentem as opiniões cristalizadas, impedindo o livre trânsito da reflexão, que se encontra dentro dos espelhos da mente humana, sempre pronta a refletir nossas incompletudes e incertezas.

Uma pergunta que fica: até que ponto a postura do príncipe pode servir de objeto de reflexão sobre o papel das defesas egóicas na consciência do sujeito humano (com o perdão da redundância rítmica, afinal, não há outro sujeito)?

Um primeiro dado a ser lançado pode ser o fato de que, se há uma conexão

Pollock: espontaneidade ou intenção crítica?

Pollock: espontaneidade ou intenção crítica?

entre Picasso, Pollock e o príncipe de Dostoiévski, esta reside no desejo (que é de fato diferente do “prazer”, como parece postular o personagem Míchkin) pelo confrontamento de ideias. E acho especialmente importante, neste contexto, a palavra “travar”, que o personagem usa, e que se aproxima do que entendo ser a lógica mesma do que se chama de “diálogo”, a despeito do positivismo do termo. Sem combate, não há debate, nem reflexão. É o que se pode apreender nas entrelinhas dos sofistas gregos, por exemplo, mesmo e apesar de suas intenções escusas…

Marcelo Henrique Marques de Souza